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Setor Oeste

Herança digital: uma análise extrapatrimonial

Herança digital: uma análise extrapatrimonial

13 jul 2023

Marcella Pires Costa[1]

1.               Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma análise patrimonial e extrapatrimonial da herança digital, discutindo a extensão da aplicação da disciplina de direito sucessório sobre o tema, aliada ainda a uma discussão acerca dos direitos ao esquecimento, à privacidade, à autodeterminação digital e à necessária proteção de direitos de ordem patrimonial.

2.               Palavras-Chave

Herança Digital. Direito ao Esquecimento. Direito à Autodeterminação Digital.

3.               Introdução

O acesso à internet e a sua utilização como canal de arquivamento e transmissão instantânea de dados, para além de ocasionar transformações de enormes proporções na forma como a informação é repassada e os relacionamentos interpessoais são travados ao redor de todo o globo, também lançam seus reflexos sobre a esfera dos direitos da personalidade, e, por consequência, sobre as relações de direito privado, na medida em que implicam uma transformação sem precedentes na forma como o indivíduo se projeta socialmente como um “eu”, num processo intermediado pela construção de verdadeiras “personas digitais”, veiculadas pelas mais diversas formas de mídias sociais, por meio da simples associação controlada de registros eletrônicos (fotos, vídeos, áudios, usuários, descrições biográficas etc.).

Os contornos delimitadores da personalidade e dos direitos inerentes a ela se estendem e passam a abarcar e lançar reflexos sobre os meios digitais, num contexto em que, pelo intermédio da internet e das redes sociais, a própria imagem e vida pessoais são convertidas em artigos de comércio, num cenário do qual emergem as figuras profissionais dos chamados “blogueiros”, “youtubers”, “vloggers”, “gamers”, dentre outros, que constroem verdadeiros “impérios digitais”, de onde extraem sua renda e em cujo alicerce edificam grande parte do seu patrimônio.

Frente a essas transformações, o direito e o seu arcabouço legislativo se encontram numa situação de instabilidade e insegurança jurídica, confrontados pela contínua necessidade de aprimoramento e modernização, na – talvez soberba – expectativa de manterem-se atualizados, com vistas a abarcar, na medida do possível, os conflitos nascidos na “sociedade da informação”, os quais avançam em progressão geométrica.

Em todo o tempo de navegação na internet, os usuários estão continuamente deixando pegadas em seu encalço, marcas virtuais que são registradas e armazenadas por tempo indefinido e cujos efeitos são ainda potencializados por um costume cada vez mais marcante de autoexposição.

Por essa razão, se torna cada vez mais fragilizada na era da pós-digitalização a defesa à privacidade, à intimidade (“right to be left alone”) e ao segredo, os quais são protegidos tanto pela ótica dos direitos fundamentais, de ordem constitucional, quanto dos direitos da personalidade, de natureza privada, além de receber amparo com a edificação de legislação especial, qual seja, a Lei n° 12965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet).

Partindo da análise dessa dinâmica, é possível abstrair uma interconexão entre o direito à privacidade, à autodeterminação informativa e ao esquecimento (ou, ainda, o direito de ser esquecido), cujos conteúdos serão tratados posteriormente mais a fundo.

É a partir  da coleção desses “rastros digitais” que se forma o que hoje se entende por “herança digital”, grande novidade nascida do meio doutrinário e que é, aos poucos, absorvida pela jurisprudência pátria, não obstante  a grande instabilidade e incerteza jurídica em face do limbo legislativo relativo às hipóteses de transmissão causa mortis de registros digitais, tais quais fotos, músicas, livros, bônus de jogos, documentos pessoais, senhas de perfis em redes sociais, bem como quaisquer arquivos que possam ser armazenados na chamada “nuvem”, em sites, blogs, redes de interação social etc. 

4.               Herança digital

É marcante a situação de insegurança jurídica em que o direito brasileiro se encontra frente à omissão legislativa no que diz respeito à transmissibilidade da chamada “herança digital”. Em primeiro lugar, é importante densificar e traçar os contornos do referido conceito, de forma a se possibilitar uma maior compreensão das ideias aqui propostas.

Herança, segundo o conceito da professora Maria Helena Diniz, corresponde ao “patrimônio do falecido, conjunto de direitos e deveres que se transmitem aos herdeiros legítimos ou testamentários, exceto se forem personalíssimos ou inerentes à pessoa do de cujus” (DINIZ, 2012). Por ser um patrimônio, a ele corresponde uma universalidade de bens e direitos, um complexo de relações jurídicas, os quais, numa visão tradicional do instituto, deverão necessariamente ser dotados de valor econômico, excluindo-se da esfera meramente pessoal ou moral [FIUZA, 2015]. Assim, herança digital, ou “legado virtual”, corresponde a uma universalidade de bens compostos por arquivos ou registros digitais, tais quais fotos, vídeos, postagens em redes sociais, livros, músicas, dados, arquivos armazenados em nuvens, que podem ser transmitidos aos herdeiros, seja através de inventário, arrolamento, ou legítima sucessão.

A despeito de as questões atinentes à herança digital poderem ser abarcadas pela legislação sucessória, quando interpretada extensivamente, inexiste legislação específica sobre a matéria, principalmente no que diz respeito a arquivos digitais desprovidos de conotação econômica, situação que gera incerteza acerca da correta forma de tratamento da matéria. Nas palavras do professor Tarcísio Teixeira:

Apesar de não haver previsão expressa na lei sobre herança de bens digitais, nos parece que quando estes bens tem cunho patrimonial nossa legislação é ´relativamente suficiente para tutelar o assunto’ (Código Civil, leis sobre direitos autorais, software, marca e patentes etc.).

Assim, a dúvida não é precisamente quanto à possibilidade de ativos digitais serem transmitidos por inventário ou arrolamento, mas sim quanto à possibilidade de sucessão em caso de ausência de manifestação expressa de vontade por parte do cujus, principalmente, no que diz respeito a arquivos digitais não apreciáveis economicamente.

Tarcísio Teixeira entende que na hipótese de bens patrimonialmente avaliáveis, como registros e arquivos eletrônicos de segredos empresariais/industriais, informações de patentes de invenções, vídeos, livros, músicas, fotos etc., poderão estes ser transferidos tanto por ato inter vivos, quanto causa mortis. Por outro lado, nas palavras do autor:

Quanto a registros e arquivos que não tenham conotação patrimonial, como contas de mensagens trocadas (email, MSN, WhatApp), bônus em jogos (que não possam ser convertidos em dinheiro), imagens e fotos (sem apelo comercial), entre outros, a questão ganha maior complexidade.

Isso se dá em razão de uma facilidade de inserção de arquivos digitais avaliáveis economicamente na noção de patrimônio, a qual está tradicionalmente associada a noções de ordem patrimonial. Por essa razão, a insegurança jurídica se restringe à hipótese de bens digitais que não possuem valor econômico imediato (mas que, não obstante, podem vir a tê-lo futuramente), cujo caráter patrimonial não é evidente, ou que possuam apenas valor afetivo, aspecto este de extrema importância e igualmente merecedor de tutela jurídica, o qual, por sua vez, ganha contornos ainda mais relevantes quando analisado sob a ótica do direito à preservação da memória do falecido.

Desse impasse advém uma série de discussões doutrinárias acerca da possibilidade de perfis em redes sociais, fotos, vídeos, notas, em suma, arquivos particulares não apreciáveis patrimonialmente serem ou não objetos de direito sucessório, em razão de não representarem valor econômico, não obstante seu valor afetivo.

São bastante recorrentes litígios movidos por familiares do de cujus que pleiteiam jurisdicionalmente a exclusão ou acesso às contas do falecido em páginas da internet; daí a importância de se deixar registrada a intenção de permitir ou não o acesso a essas contas de bens virtuais após a morte, “para que não fiquem perdidos no mundo digital ou sejam explorados por quem não tem direito ou não seria da vontade do falecido” [ROCHA, ISABELA, 2013], e, igualmente, de forma a resguardar o direito à intimidade.

Existe, como um desdobramento do direito à intimidade, o chamado “direito de ser esquecido”, o qual é conceituado por Tarcísio Teixeira como o direito de pleitear que informações ao seu respeito sejam apagadas do banco de dados. O autor trata o “direito ao esquecimento” e o “direito a ser esquecido” como sinônimos, sendo vistos como um direito instrumental que visa fundamente resguardar direitos, tais quais, o direito à privacidade, à dignidade, o que se torna facilmente identificável pela leitura do Enunciado n. 531 da VI Jornada de Direito Civil, de 2013, cuja redação inclui o direito ao esquecimento na tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade de informação. Sendo assim, na medida em que o direito ao esquecimento guarda estreitos vínculos com direitos da personalidade, acaba por entrar muitas vezes em choque com direitos também constitucionalmente assegurados, como é o caso do direito à informação, à livre manifestação do pensamento e à liberdade de imprensa.

Autores como Renata C. Steiner estabelecem uma diferença conceitual entre direito ao esquecimento, em sentido estrito, e direito de ser esquecido, sendo o primeiro correspondente, mais especificamente, ao direito à retirada de notícias de circulação, enquanto o segundo diz respeito à proibição da revisita de notícias vinculadas ao seu nome muito tempo após a ocorrência do fato. Existem muitos julgados em que esse direito é reconhecido, principalmente na área penal, sob a justificativa de que a veiculação pelos canais de informação dos nomes das pessoas a crimes pelos quais tenham sido condenadas, ou, ainda, absolvidas, pode vir a causar graves transtornos, além de muitas vezes consubstanciar um óbice à sua ressocialização. É também muito comum em litígios referentes à retirada de informações veiculadas pela imprensa, seja por meio de jornais impressos, transmissão televisiva ou divulgação digital. Mas, para além disso, e a despeito de a sua construção histórica remontar a época anterior à era digital, com o advento e modernização da internet e dos canais sociais de comunicação, passou a ser aplicado também sobre litígios concernentes a postagens, dados e registros divulgados em páginas eletrônicas, tais quais sites, blogs e redes sociais.

Dessa forma, o direito ao esquecimento é passível de aplicação tanto nas circunstâncias em que a informação é transmitida pela imprensa tradicional, quando por canais digitais; nas palavras da professora Renata C. Steinner:

O direito ao esquecimento não se refere apenas a notícias jornalísticas (encontrando também aplicação em críticas ou mesmo postagens em redes sociais, por exemplo) e nem se circunscreve apenas a questões criminais (podendo dizer respeito a outros aspectos da vida privada).

O direito ao esquecimento é de particular importância na análise de casos de colisão dos direitos à privacidade e à informação quando as informações veiculadas envolvem dados pessoais da pessoa retratada. Como já foi dito antes, essas considerações têm pertinência tanto em hipóteses de divulgação de informações pela imprensa quanto por endereços eletrônicos, como é o caso dos sites de relacionamento, o que na seara digital se torna de particular importância, em vista do processo a que a professora Renata C. Steiner se refere como “entronização da informação” e da facilidade com que esses dados podem ser revisitados.

Como bem lembra a autora, o direito de privacidade funciona como um limite ao direito de informação, mesmo que não exista a priori preponderância de um sobre outro, devendo então guiar-se em todos os casos de conflito pela análise de critérios de ponderação no caso concreto, pois, segundo lição de Luís Roberto Barroso, “uma regra que estabeleça preferência abstrata de um direito fundamental sobre outro não será válida por desrespeitar o direito preterido de forma permanente e violar a Constituição” [STEINER, RENATA]. Assim, no que diz respeito ao resguardo do direito à informação e à defesa do interesse público, o referido direito existe “na medida em que não infrinja o direito fundamental de personalidade e a informação só poderia ser considerada como algo que transcende a esfera de direito da pessoa retratada quando houver evidente e inegável interesse público que justifique a sua divulgação” [STEINER, RENATA].

No que tange a tutela desse direito, Tarcísio Teixeira afirma:

Independentemente de pessoa pública ou não, se for o caso de informação falsa, o interessado poderá pleitear o direito ao esquecimento, Sendo a informação verdadeira, será preciso verificar no caso concreto os direitos que estão em jogo, devendo haver o sopesamento de interesses envolvidos, conforme os direitos constitucionais, de um lado, a privacidade e dignidade da pessoa humana, de outro, direito a informação, livre manifestação do pensamento e liberdade de imprensa, sem prejuízo de outros direitos que possam estar envolvidos no caso.

Essa análise deve ser feita em conjunto com a avaliação dos três critérios a que se refere a professora Renata C. Steiner, quais sejam, os critérios de veracidade, atualidade e ânimus narrandi (ou seja, ausência de intuito ofensivo; corresponde a uma análise subjetiva da existência ou não de culpa).

Quando esse conflito se desenvolve em âmbito digital ganha contornos ainda mais problemáticos em vista das especificidades do modo de transmissão de informação via internet e do fenômeno de multiplicação e aceleração do trânsito de dados, que acabam por desembocar num processo que o professor Tarcísio chama de “perpetuação de dados”, potencializado pela tendência de autoexposição em mídias sociais.

A internet representa uma transformação sem precedentes nas mais diversas dimensões da vida em sociedade, causando inclusive modificações na forma como o próprio “eu” se autoidentifica e se apresenta socialmente. É um espaço de construção de “personas digitais”, reflexos e, ao mesmo tempo, distorções da personalidade; são verdadeiras “imagens-retrato” [BENTO, EDUARDO, 2018], as quais diversas vezes guardam muito pouco de identidade com o “verdadeiro eu” e muito pouco reúne dos predicados que a real personalidade enfeixa.

O conceito de pessoa (persona), segundo Moncada, advém da própria ideia de “máscara”, ou “caraça”, que os atores da antiguidade greco-romana carregavam em cena, enquanto disfarçavam a voz (personare) e representavam (BENTO, EDUARDO, 2018). A mesma lógica de representação se desenrola no mundo virtual, principalmente em terreno de redes sociais, através da manipulação controlada de dados e registros pessoais, processo que perpassa o próprio direito de autodeterminação digital, compreendido aqui não mais só como uma extensão do direito à privacidade, mas como um bem autônomo, tutelável em razão da própria proteção da personalidade.

Nas palavras de Livia Teixeira Leal, “internet viabiliza uma projeção da identidade do indivíduo, que se distingue da concepção que se tinha como paradigma, e, ainda segundo a professora, a identidade passa a ser ressignificada, através da construção de um ”corpo eletrônico”, por meio da associação representativa de signos, tais quais fotografias, perfis em redes sociais, nomes de usuário etc., corpo este que deverá ser tutelado jurisdicionalmente, na medida em que reflete e “projeta” a própria personalidade. Em meio a esse cenário:

A noção de direito à privacidade passa a contemplar, então, a autodeterminação informativa, ou seja, a possibilidade de os indivíduos controlarem as informações que lhe dizem respeito, passando-se de um eixo pessoa-informação-sigilo para pessoa-informação-circulação-controle”. [TEIXEIRA, LIVIA, 2018]

Trata-se de uma clara demonstração de como a internet e a correspondente evolução dos meios de transporte de dados são capazes de ampliar e ressignificar conceitos jurídicos pré-existentes, o que evidencia um fenômeno constante e dinâmico de modernização da doutrina jurídica.

Muitas páginas de redes sociais dispõem em seus termos de acordo sobre o procedimento a ser adotado em caso de falecimento do usuário, como é o caso do Twitter, que prevê a exclusão do perfil mediante solicitação de interessado, e do Facebook, que autoriza a conversão da página em uma espécie de memorial, onde perfis já anteriormente aprovados na conta poderão prestar homenagens, numa espécie de rito fúnebre digital [ROCHA, ISABELA]. O Yahoo, em seus termos de uso, dispõe sobre a pessoalidade e intransferibilidade da conta, além de que aplicativos como WhatsApp e Telegram protegem as conversas dos usuários por criptografia, de forma a vedar o acesso de familiares em caso de falecimento; também o iCloud dispõe sobre a inexistência de direitos de sucessão sobre as contas dos usuários, sendo quaisquer direitos advindos do ID Apple insucestíveis de transferência e quaisquer conteúdos vinculados à conta indisponibilizados, com o falecimento do usuário, havendo também tratamento semelhante nos termos do iTunes e Kindle [TEIXEIRA, LIVIA, 2018].

Em vista do vácuo legislativo no que diz respeito à disciplina da herança digital, muitos serviços de gerenciamento post mortem de arquivos digitais têm emergido no mercado. Esses serviços vão desde empresas que instituem um “guardião virtual” para as contas dos usuários, numa espécie de testamento digital, como é o caso da Entrusted, Madison, Legacy Locker e Datalnherit [ROCHA, ISABELA], até portais de programação de mensagens fúnebres, e sites de armazenamento de dados post mortem, como é o caso do Brevitas, que mantém o registro de dados de e-mail, perfis sociais e senhas de banco por até cinco anos desde a última renovação de contrato [ROCHA, ISABELA].

Nesse sentido, os “aplicativos de morte” estariam se desenvolvendo como uma clara demonstração de um fenômeno de “ritualização post mortem” [TEIXEIRA, LIVIA], possibilitando aos seus usuários o controle do que se entende por memória digital e, por consequência, uma ampliação da extensão dos efeitos do direito à autodeterminação digital para uma esfera post mortem, em que inexiste personalidade, mas perduram os reflexos de direitos a ela inerentes.

O surgimento desses serviços é um forte indicativo da demanda social por uma regulamentação do que se entende por “herança digital”, de forma a se tutelar não só o direito à privacidade, mas também uma “memória digital”, entendida aqui como uma extensão do direito à personalidade.  O Marco Civil da Internet, apesar de não tratar de direito sucessório, acaba por disciplinar indiretamente a matéria, na medida em que erige princípios essenciais para orientação da tutela jurisdicional na seara digital, quais sejam, o princípio da proteção da privacidade e da proteção aos dados pessoais (art. 3°).

É justamente em razão de sua dimensão axiológica que o estudo da herança digital deve perpassar tanto uma análise patrimonial quanto extrapatrimonial, sob pena de prejuízo ao resguardo de direitos fundamentais (ou direitos da personalidade, quando analisados sob a ótica privada). Não obstante, é comum que a matéria seja tratada por um viés estritamente patrimonial. Como aponta Livia Leal, as próprias denominações “herança digital”, “legado digital”, “patrimônio digital” e “ativo digital” já revelam essa tendência, o que, por si, direciona à interpretação pela possibilidade da aplicação da legislação sucessória ao tema.

A professora defende que a aquisição de determinado direito do falecido não significa necessariamente que tenha havido sucessão, como costuma ser o caso das situações jurídicas extrapatrimoniais de titularidade do de cujus, caso em que as pessoas designadas adquirem tão somente o direito de agir [TEIXEIRA, LIVIA], uma vez que “os dados pessoais dos usuários falecidos não são transmitidos aos herdeiros, na medida em que se referem a aspecto existencial do de cujus” [TEIXEIRA, LIVIA].

O falecimento do de cujus, a despeito de implicar extinção dos direitos de personalidade, não impede que venham a ter reflexo post mortem, pois a morte do titular “não significa que determinados direitos vinculados à pessoa do de cujus deixem de receber proteção jurídica” [TEIXEIRA, LIVIA]. Segundo a autora:

Não há uma transferência de tais direitos da personalidade para os familiares. Muito pelo contrário: a garantia post mortem dos direitos da personalidade do de cujus, considerando-se o aspecto objetivo da personalidade, pode se operar em face dos familiares [TEIXEIRA, LIVIA].

Essa interpretação é de especial relevância não só para a tutela e a defesa dos direitos à privacidade, ao esquecimento e à autodeterminação, mas também para o resguardo do direito à liberdade. Não há liberdade sem a garantia do direito à privacidade, havendo entre ambas uma íntima relação de interdependência, uma vez que, como dispõe Eduardo Bento, para o pleno exercício do direito de liberdade:

Pressupõe-se o exercício do direito de privacidade, devendo ser garantido a qualquer pessoa um espeço reservado, inviolável, para que possa se abster da censura alheia, dos olhares da sociedade, garantindo assim, interação com seu íntimo e, por fim, ao exercício do direito de autodeterminação [BENTO, EDUARDO]

A despeito de inexistir entendimento consolidado na jurisprudência, diversos tribunais pátrios, ao tratarem do tema, optaram por resguardar o direito à privacidade, impedindo o acesso de herdeiros e familiares a contas de usuários já falecidos em redes sociais e aplicativos: 

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTECENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE. A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital. A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis. A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade. Recurso conhecido, mas não provido.

(TJ-MG – AI: 10000211906755001 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 27/01/2022, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/01/2022)

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL (FACEBOOK) APÓS SUA MORTE – QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA – TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS – POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMAR O PERFIL EM “MEMORIAL”, TRANSMITINDO OU NÃO A SUA GESTÃO A TERCEIROS – INVIABILIDADE, CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA, POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO – AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJ-SP – AC: 11196886620198260100 SP 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2021)

Contudo, os direitos à privacidade, ao esquecimento e à autodeterminação não devem se sobressair a priori em relação aos direitos de ordem patrimonial, o que acaba por tornar a questão ainda mais problemática. Segundo Livia Teixeira:

Os conteúdos com caráter patrimonial, como dados vinculados e transações financeiras, senhas de acesso a aplicações de bancos, etc., ou mesmo a exploração econômica dos atributos da personalidade, por restarem contidos na esfera da patrimonialidade, poderiam ser transferidos aos herdeiros, que passarão a ser administradores de tal patrimônio [TEIXEIRA, LIVIA]

Dessa forma, a questão acaba por se complicar ainda mais quando o caráter pessoal do bem digital se confunde com a sua dimensão patrimonial, pois “embora os direitos da personalidade sejam intransmissíveis, não se pode negar que os efeitos patrimoniais decorrentes da repercussão econômica de tais direitos são transmissíveis aos herdeiros” [TEIXEIRA, LIVIA]. Para um melhor retrato da situação, basta visualizar a cena digital contemporânea, em que as chamadas mídias sociais ocupam boa parte do tempo e das preocupações dos indivíduos, acabando por se consolidar como uma verdadeira indústria, de onde emergem as figuras dos chamados “influenciadores digitais”, que colocam suas próprias vidas a exposição no mercado digital, formando, a partir dos seus registros na internet, patrimônios de dimensões expressivas, os quais, assim como os direitos supracitados, merecem tutela jurisdicional efetiva.  No entendimento da autora supracitada:

Em relação a páginas e contas protegidas por senha, deve-se verificar o caráter do conteúdo ali contido e a funcionalidade da aplicação. Tratando-se de aplicações com fundo estritamente patrimonial, como contas de instituições financeiras, ou ligadas a criptomoedas, por exemplo, a conta e a senha poderiam ser transferidas para os herdeiros. Contudo, em relação a aplicações de caráter pessoal e privado, como é o caso de perfis de redes sociais e dos aplicativos de conversas privadas, não se deve permitir, a princípio, o acesso dos familiares, exceto em situações excepcionalíssimas, diante de um interesse existencial que prepondere no caso concreto. Nesses casos, a senha vai proteger os dados recebidos, enviados e armazenados pelo usuário, inclusive em face do acesso indevido pelos familiares após a morte. [TEIXEIRA, LIVIA]         

O melhor tratamento da matéria, portanto, envolve a análise cautelosa do caso concreto para avaliação das circunstâncias em que se expressa o conflito e a interconexão entre o caráter patrimonial e extrapatrimonial da herança digital, de forma a, na medida do possível, garantir a devida tutela das situações existenciais, sem prejuízo para o resguardo dos direitos patrimoniais, atentando sempre para a manifestação prévia de vontade do de cujus. 

5.               CONCLUSÃO  

O direito, com fins de realizar o seu papel fundamental de pacificador e promotor de equanimidade e justiça social, necessita de constante atualização frente às transformações ocorridas no seio da sociedade. Frente à chamada “sociedade da informação” e às suas constantes transformações, esse papel se torna ainda mais complexo e fundamental, exigindo da doutrina, legislação e jurisprudência a constante reinterpretação e ressignificação dos institutos jurídicos.

Em vista do exposto, vem à luz a problemática da extensão do conceito de herança digital, universalidade de bens e dados armazenados digitalmente, a qual não possui ainda disposição legislativa expressa, causando uma situação delicada de insegurança jurídica, devido à ausência de suporte legislativo para a tutela deste direito, cuja tutela resta mal definida por contornos imprecisos.

O tratamento legislativo da matéria se torna ainda de particular importância quando se tem em vista que a apreciação do tema costuma implicar um imbricado conflito de direitos, apenas solúvel através de uma análise cautelosa das circunstâncias fáticas de cada caso. Isso porque o tema envolve uma complicada interconexão entre direito à privacidade, à dignidade, à liberdade, à autodeterminação digital, ao esquecimento e direitos de ordem patrimonial.

Para além disso, e com muita frequência, os litígios envolvendo herança digital são marcados por uma dimensão dúplice no que diz respeito ao seu caráter patrimonial e extrapatrimonial, que muitas vezes se confundem ou interpenetram devido à própria evolução e desenvolvimento da internet e das chamadas “mídias sociais”, que abriram espaço para um “comércio da vida pessoal”, muito comum na era pós-digital e que acaba por imbuir aspectos da vida e personalidade humana de uma lógica fundamentalmente patrimonial.

6.               BIBLIOGRAFIA.

ARAUJO, Luis Alberto David. A Proteção Constitucional da Própria Imagem. São Paulo, 1989;

STEINER, Renata C. Breves Notas sobre o Direito ao Esquecimento. Direito Civil Constitucional. A Ressignificação da função dos Institutos Fundamentais do Direito Civil Contemporâneo e sua Consequências. Florianópolis, 2014;

BENTO, EDUARDO. Direito à Reserva Sobre a Intimidade da Vida Privada. Breve interpretação à luz do Código Civil Angolano. Teoria Geral do Direito Civil. Benguela, 2018;

ANTUNES, Nathália Zampieri, ZAMPIERI, Marcelo Carlos. A Herança Digital e sua Necessidade de Implementação no Processo de Modernização do Ordenamento Jurídico Brasileiro. Ed. 12, 2015;

LIMA, Isabela Rocha. Herança Digital: direitos sucessórios de bens armazenados virtualmente. Brasília, 2013;

LEAL, Livia Teixeira. Internet e Morte do usuário: A Necessária Superação do Paradigma da Herança Digital. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018

METTZER, Editor. Título do artigo. Título do periódico. Local de publicação (cidade), volume, número, nº fascículo, páginas inicial-final, dia, mês e ano.

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo – 18. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.