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Setor Oeste

A liberdade religiosa em tempos extremos

A liberdade religiosa em tempos extremos

06 abr 2020

Por Pedro Villas Boas, advogado

A crise sanitária que se instalou em todo o planeta com a pandemia que hoje vivenciamos tem ocasionado vários questionamentos e polêmicas. O cenário mundial de combate à Covid-19 vem levando os governos a tomarem atitudes drásticas para evitar sua propagação. As pessoas trocaram suas rotinas pelo isolamento e cidades, que são constantemente agitadas, atualmente estão vazias.

No Brasil, essa situação não está diferente. Estamos vivendo um cenário de incertezas nos poderes federativos, que vem levando a edição e alteração em série de decretos executivos, em uma tentativa de manter a ordem e a segurança pública.

Há, portanto, determinações de isolamento social e a proibição de funcionamento de locais que ocasionem a aglomeração de pessoas, como por exemplo, as igrejas.

Sabemos que em nosso país a cultura religiosa é bastante difundida e influencia diretamente os padrões morais da nossa sociedade. Portanto, para muitos, a determinação de fechamento de templos se destaca em um tom negativo, dentre as demais restrições.

Lideres religiosos de diversos credos começaram a questionar a possibilidade jurídica de um decreto executivo determinar o fechamento de templos religiosos, em face da vigência do inc. VI do art. 5º da Constituição Federal, que assim determina:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Sabemos que o texto constitucional é a baliza comparativa de todo e qualquer ato praticado pela administração pública, mas, para a correta compreensão desse trecho do texto constitucional, é necessário diferenciar os institutos da liberdade de consciência e crença e a liberdade de culto.

O texto constitucional garante ao individuo a liberdade de elaborar pensamentos sem qualquer restrição, podendo o mesmo exteriorizá-lo ou não, seja esse um pensamento íntimo ou um posicionamento público. Garante-se, portanto, a liberdade de se dizer o que acredita ser verdade.

A importância desse preceito constitucional é a de garantir ao indivíduo a possibilidade de formar suas convicções sem a presença de uma imposição do Estado.

Um aspecto importante para a melhor compreensão da leitura do texto constitucional é rememorar o ambiente histórico opressivo que precede a constituinte de 1988. A Constituição, nesse aspecto, traz uma carga de hostilidade muito grande a qualquer prática estatal que possa ameaçar ou restringir a liberdade de expressão já que o País acabava de passar por um período de imposição de condutas e censuras pelo regime militar.

E nessa mesma linha argumentativa é que segue a diferenciação da liberdade de crença. Nada mais pessoal e íntimo do que o credo e a sua exteriorização.

No Brasil, essa garantia ainda é considerada recente. Apenas com a constituição de 1824 é que se passou a autorizar cultos domésticos de outras religiões que não a católica, religião oficial do Império, permanecendo até a Proclamação da República.

Portanto, não se pode confundir a tutela constitucional dada à liberdade de crença com a sua prática religiosa, já que essa diz respeito ao direito de o indivíduo poder escolher seu credo, mudar sua religião ou ainda não escolher nenhuma, tudo isso sem que o Estado a ele imponha uma conduta.

A posição de destaque dada pelo constituinte originário ao direito de crença advém da necessidade de se preservar o livre pensamento e não de garantir o seu culto.

Dessa forma, diferentemente do que muitos vem defendendo nesses momentos turbulentos em que nossa sociedade se encontra, o texto constitucional não dá um status absoluto ao direito de culto, o faz ao direito de crença, esse sim inviolável.

A liberdade de culto é apenas consequência da liberdade de crença, já que representa sua exteriorização que necessita de um local físico para acontecer e, por isso, mereceram a proteção do constituinte.

Portanto, como dito, a exteriorização da liberdade de crença não é absoluta. As práticas litúrgicas do credo escolhido pelo indivíduo devem, sim, respeitar os valores e as regras sociais, sendo exercido em harmonia com os demais direitos fundamentais, como na presente situação, o direito à saúde.

A pandemia que enfrentamos atualmente é uma questão que afeta toda a sociedade e as medidas de proteção para evitar sua disseminação devem ser respeitadas por todos. Da mesma forma que não é permitido ao Estado abafar a liberdade de culto, essa também não pode ser sobreposta aos outros valores constitucionais, como a proteção à vida e à dignidade da pessoa humana.

Diante desse cenário, o Estado, por questões de saúde pública, pode, sim, dispor sobre restrições à realização do culto religioso presencial, para que não ocorra aglomeração de determinado número de pessoas, tratando-se, portanto, de uma restrição não escrita na constituição ao direito de reunião, o que também afeta outras instituições.

Não há nesse caso, como alguns bradam, embaraço do Estado ao funcionamento religioso. Pelo contrário, as práticas litúrgicas podem ser exercidas por todos de forma livre através de outros meios mais seguros à saúde de todos, até que cessem os efeitos desse mal que assola nossa sociedade, que todos esperamos que se esgote com a maior brevidade possível.

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