A competência do foro em ações contra o Estado
10 jul 2020
Goiânia, GO
Setor Oeste
Marcella Pires
Restou superado o entendimento até alguns anos assentado na jurisprudência pátria acerca da impossibilidade jurídica do pedido de usucapião sobre bens pertencentes a sociedades de economia mista, por serem estes até então enquadrados como bens públicos imprescritíveis.
Fato é que bens públicos estão revestidos de certas prerrogativas, tais quais a impenhorabilidade, a alienabilidade condicionada e a imprescritibilidade, a qual está positivada tanto na Código Civil, em seu artigo 102, quanto na Constituição Federal, por força dos artigos 183, §3° e 191, parágrafo único. Veja-se:
Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
.……………………………………………………………………………………….
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
.……………………………………………………………………………………….
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião
.……………………………………………………………………………………….
A usucapião é forma originária de aquisição de propriedade a partir do uso de um bem por determinado tempo, com animus domini (ou seja, a intenção de se tornar dono), de forma mansa e pacífica (ou seja, sem que tenha sido imposta resistência). Contudo, como retromencionado, esta não atinge os bens públicos, por serem imprescritíveis. Essa matéria foi inclusive sumulada pelo Supremo Tribunal Federal. Veja-se:
Súmula 340 do STF – “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.
Com vistas a uma melhor compreensão do tema aqui discutido, cumpre proceder a uma breve análise do conceito jurídico de bem público, o qual remonta ao disposto no art. 98 do Código Civil, dispondo:
Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.
A referência às pessoas jurídicas de direito público interno remete à leitura do art. 41 do Código Civil. Veja-se:
Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I – a União;
II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;
III – os Municípios;
IV – as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei nº 11.107, de 2005)
V – as demais entidades de caráter público criadas por lei.
Sob uma análise estritamente vinculada ao texto da lei, é possível uma interpretação no sentido de que os bens integrantes do patrimônio das empresas estatais (sociedades de economia mista e empresas públicas) seriam bens privados, por não se tratarem de pessoas jurídicas de direito público interno, e dada a natureza jurídica de direito privado dessas entidades. Não obstante, poderiam estes se submeter a um regime especial em razão de sua destinação pública, conservando ainda sua natureza privada.
Existe ainda outra linha de entendimento segundo a qual a categoria de bens públicos abrangeria os bens pertencentes à administração pública como um todo. Para essa corrente, tanto os bens das pessoas jurídicas de direito público, quando as de privado, desde que integrantes da Administração Pública, possuiriam natureza pública, razão pela qual as prerrogativas inerentes aos bens públicos (tal como a imprescritibilidade aquisitiva) alcançariam também as empresas estatais, a despeito de seu regime de direito privado.
Uma terceira linha advoga ainda no sentido de que são bens públicos os pertencentes às pessoas jurídicas de direito público e privado, desde que estejam afetados à prestação de serviços públicos, ou ainda a outra finalidade pública. Por consequência, o patrimônio pertencente a empresas estatais (sociedades de economia mista ou empresas públicas) cujo objeto se restrinja à estrita prestação de atividade econômica não possuiria as prerrogativas dadas aos bens públicos. Estas estariam reservadas apenas às estatais prestadores de serviços públicos.
Fato é que o Supremo Tribunal Federal tem dado tratamento diferenciado às empresas públicas prestadoras de serviços públicos e aquelas que exercem atividade econômica em sentido estrito, existindo, por exemplo, o entendimento pacificado na Corte de que aquelas podem pagar dívidas por precatórios, e não com penhora de bens e bloqueio de contas. Veja-se ementa da ADPF 437/CE:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. LIMINAR DEFERIDA EM PARTE. REFERENDO. EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO DO CEARÁ (EMATERCE). ENTIDADE ESTATAL PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO, EM CARÁTER EXCLUSIVO E SEM INTUITO DE LUCRO. ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL. INSTRUMENTOS DA POLÍTICA AGRÍCOLA. ART. 187, IV, DA CF. ATIVIDADES ESTATAIS TÍPICAS. EXECUÇÃO. REGIME DE PRECATÓRIOS. ARTS. 2º, 84, II, 167, VI E X, E 100 DA CF. CONVERSÃO DO REFERENDO À LIMINAR EM JULGAMENTO DE MÉRITO. PRECEDENTES. PROCEDÊNCIA. 1. É firme a jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de que somente as empresas públicas que exploram atividade econômica em sentido estrito estão sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, nos moldes do art. 173, § 1º, II, da Lei Maior. Precedentes. 2. As atividades de assistência técnica e extensão rural, positivadas no art. 187, IV, da Constituição da República como instrumentos de realização da política agrícola do Estado, traduzem atividades estatais típicas. 3. Embora constituída sob a forma de empresa pública, a EMATERCE desempenha atividade de Estado, em regime de exclusividade e sem finalidade de lucro, sendo inteiramente dependente do repasse de recursos públicos. Por não explorar atividade econômica em sentido estrito, sujeita-se, a cobrança dos débitos por ela devidos em virtude de condenação judicial, ao regime de precatórios (art. 100 da Constituição da República). 4. A expropriação de numerário em contas do Estado do Ceará para satisfazer execuções de débitos trabalhistas da EMATERCE traduz indevida interferência do Poder Judiciário na administração do orçamento e na definição das prioridades na execução de políticas públicas, em afronta aos arts. 2º e 84, II, 167, VI e X, da CF. Precedentes. 5. Conversão do referendo à liminar em julgamento definitivo de mérito. 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente.
Acerca do tema, vem a calhar a douta lição de José dos Santos Carvalho Filho:
Os bens que passam a integrar o patrimônio das empresas públicas e das sociedades de economia mistas, provêm geralmente da pessoa federativa instituidora. Quando, todavia, são transferidos ao patrimônio daquelas entidades, passam a caracterizar-se como bens privados. E não são atribuídas a elas as prerrogativas próprias de bens públicos, como a imprescritibilidade, a impenhorabilidade, a alienabilidade condicionada etc.
Nessa mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento reconhecendo a possibilidade da usucapião de bens pertencentes às sociedades de economia mista, aventando apenas a “possibilidade” de que estes possam ser enquadrados como bens públicos, deste que afetados a uma destinação pública. Veja-se:
“bens integrantes do acervo patrimonial de sociedade de economia mista sujeitos a uma destinação pública PODEM ser considerados bens públicos, insuscetíveis, portanto, de usucapião” “desde que destinados à prestação do serviço ou que o ato constritivo possa comprometer a execução da atividade de interesse público.” ( AgInt no REsp 1719589/SP, Rel. Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/11/2018, DJe 12/11/2018) e ( AgRg no REsp 1.070.735/RS, Rel Ministro Mauro Campbell Marques, segunda Turma, julgado em 18.11.2008; AgRg no REsp 1.075.160/AL, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 10.11.2009; REsp 521.047/SP, Rel Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 20.11.2003)”
E:
USUCAPIÃO. Sociedade de Economia Mista. CEB. – O bem pertencente a sociedade de economia mista pode ser objeto de usucapião. – Precedente. – Recurso conhecido e provido.
(STJ – REsp: 120702 DF 1997/0012491-6, Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Data de Julgamento: 28/06/2001, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 20.08.2001 p. 468)
Vem sendo consagrado na jurisprudência pátria o entendimento de que sociedades de economia mista, uma vez regidas pelas normas comuns às demais empresas privadas, conforme previsão do art. 173, §1°, da Constituição Federal, não estão imunes à possibilidade de usucapião de seus bens. Contudo, nesse caso, é condição essencial para a prescrição aquisitiva a verificação da ausência de destinação pública, de forma que a verificação de que o bem está afetado à prestação de determinado serviço público descarta, necessariamente, a possibilidade da usucapião.
Nesse ponto vêm convergindo os tribunais pátrios:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA PRESTADORA DE SERVIÇOS PÚBLICOS. BEM SUSCETÍVEL DE USUCAPIÃO. 1. É cediço que o pedido da usucapião, por se constituir forma originária de aquisição de propriedade, deve vir acompanhado de todos os seus requisitos legais autorizadores. Além disso, deve estar presente a prova da posse pacífica, elemento essencial ao reconhecimento do direito pleiteado, ininterrupta e com o ânimo de dono, com justo título e boa-fé, por 10 (dez) anos, à luz do que estabelece o artigo 1.242 do Código Civil. 2. In casu, a parte apelante é possuidora do imóvel por mais de vinte anos, fato comprovado por vasta documentação colacionada aos autos. 3. Conforme entendimento do STJ os bens integrantes no patrimônio das sociedades de economia mista somente são insuscetíveis de usucapião caso este bem seja de uso imprescindível para a execução das atividades inerentes ao interesse público. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E DESPROVIDA. SENTENÇA MANTIDA. (TJGO, APELACAO 0255724-96.2010.8.09.0173, Rel. DELINTRO BELO DE ALMEIDA FILHO, 4ª Câmara Cível, julgado em 11/06/2019, DJe de 11/06/2019)
………………………………………………………………………….
APELAÇÃO CÍVEL – USUCAPIÃO – SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA – DESTINAÇÃO PÚBLICA DO BEM – INEXISTENCIA DE COMPROVAÇÃO – POSSIBILIDADE DE SER USUCAPIDO. – Os bens integrantes do acervo patrimonial das entidades da Administração Pública Indireta somente serão considerados bens públicos e, portanto, insuscetíveis de serem usucapidos quando sujeitos a uma destinação pública.
(TJ-MG – AC: 10079120673623001 MG, Relator: Alexandre Santiago, Data de Julgamento: 05/03/2020, Data de Publicação: 17/03/2020)
………………………………………………………………………….
ADMINISTRATIVO. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. BEM DE EMPRESA PÚBLICA. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT. POSSE MANSA, PACÍFICA E ININTERRUPTA. LAPSO TEMPORAL. CUMPRIMENTO. NÃO RECOLHIMENTO DE CUSTAS POR EMPRESA PÚBLICA. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. 1. Tendo as empresas públicas natureza jurídica de direito privado, regendo-se pelas normas comuns às demais empresas privadas (artigo 173, § 1º, da Constituição Federal), os seus bens não estão imunes à aquisição por meio da usucapião. 2. Demonstrado o exercício de posse mansa, pacífica e ininterrupta, com ânimo de dono, por vinte anos, verifica-se a usucapião extraordinária do parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil quanto àquele que ali estabeleceu sua residência. Já a usucapião ordinária do caput do artigo 1.242 do mesmo diploma ocorre quanto àquele que, em que pese não more no local, haja-o possuído com justo título e boa-fé. 3. A isenção do pagamento de custas é privilégio concedido à União. Desta forma, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, equiparada à Fazenda Pública, faz jus a essa prerrogativa. 4. Tendo a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT contestado o feito e restado sucumbente, não há como afastar a condenação ao pagamento de honorários de sucumbência.
(TRF-4 – APELREEX: 50004776320134047200 SC 5000477-63.2013.404.7200, Relator: LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, Data de Julgamento: 16/12/2014, QUARTA TURMA)
Conclui-se, portanto, que, via de regra, os bens pertencentes às SEM sujeitam-se à prescrição aquisitiva, uma vez que se enquadram na noção de bens particulares. Por essa razão, a impossibilidade da usucapião apenas será demonstrada com a comprovação de que o bem é afetado a uma destinação pública, como no caso deste ser destinado à prestação de serviços públicos.
Referências