A competência do foro em ações contra o Estado
10 jul 2020
Goiânia, GO
Setor Oeste
Guilherme França
Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu art. 226, prevê que a família é a base da sociedade e impõe ao Estado a obrigação de conferir a ela proteção especial. Nesse sentido, o texto constitucional garante proteção a uma pluralidade de formas de família.
Assim, ao lado do casamento, o art. 226, § 3º, da CF/88, reconhece a união estável como “entidade familiar”, que também deve ser protegida pelo Estado, e deve ter sua conversão em casamento facilitada pela legislação.
Por sua vez, o art. 1.723 do Código Civil (CC) define a união estável como a entidade familiar “configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Apesar de a Constituição Federal e o Código Civil se referirem à união estável como sendo formada “entre o homem e a mulher”, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) já assentou há mais de dez anos que é possível o reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo, “segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.[1]
Além disso, o STF também equiparou a união estável ao casamento em relação ao direito sucessório, garantindo ao companheiro sobrevivente o direito de herdar bens do falecido conforme o art. 1.829 do Código Civil, o que não era permitido pelo art. 1.790 do CC antes dessa decisão da Suprema Corte brasileira.[2]
Nesse panorama de modernização do direito de família e do direito sucessório, emerge a discussão: é possível que uma pessoa conviva em duas uniões estáveis simultaneamente? Quais seriam as consequências jurídicas dessa situação?
Em relação às pessoas casadas, é sabido que não podem constituir união estável, salvo se estiverem separadas de fato ou judicialmente, conforme prevê expressamente o art. 1.723, § 1º, do Código Civil.
Contudo, vale analisar a situação da pessoa que não é casada. Poderia ela conviver em duas uniões estáveis simultâneas?
A controvérsia chegou ao Supremo Tribunal Federal, que fixou a seguinte tese no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1045273/SE, em sede de repercussão geral, com o julgamento concluído em dezembro de 2020:
A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.[3]
Desse modo, nota-se que a mais alta Corte do país já decidiu que a existência de uma primeira união estável impede o reconhecimento de uma segunda. Como fundamentos para essa decisão, o STF prestigiou o dever de fidelidade, bem como o chamado princípio da monogamia, que é princípio fundante do ordenamento jurídico brasileiro.
Antes mesmo da fixação da tese pelo STF, a impossibilidade de se reconhecer a existência de duas uniões estáveis ao mesmo tempo já era aplicada pelos demais Tribunais brasileiros, como se vê em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[4] e do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO)[5], o que certamente será reforçado após a decisão do Supremo.
Assim, verifica-se que a jurisprudência brasileira determina que, nos casos em que uma pessoa já conviva em união estável e inicia um outro relacionamento amoroso, haveria, no máximo, concubinato, conforme o art. 1.727 do Código Civil, mas não união estável., não havendo efeitos sucessórios (direito à herança) e nem previdenciários.
Porém, isso não significa que a existência do segundo relacionamento não possua consequências jurídicas.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu no julgamento do Recurso Especial nº 1185337/RS, em 2015, que um homem casado deveria pagar pensão alimentícia à mulher com quem conviveu em um relacionamento paralelo ao casamento durante quarenta anos (concubina), aplicando os princípios da dignidade humana e da solidariedade, considerando que, naquele caso, durante quatro décadas, o homem teria provido o sustento da mulher e que esta dependeria economicamente dele.[6]
No mesmo sentido, em 2021, o Tribunal de Justiça do Estado de Minais Gerais (TJMG) aplicou o referido entendimento do STJ para fixar que a obrigação do homem casado de pagar alimentos em prol da concubina é excepcionalíssima e deve observar as seguintes diretrizes: a) a idade da alimentanda; b) a existência de dependência econômica entre as partes; c) as circunstâncias do caso concreto, sobretudo se o homem casado proveu voluntariamente o sustento da concubina durante longo período de tempo.[7]
Assim, se é possível impor ao homem casado o dever de pagar pensão alimentícia à concubina, tanto mais seria possível obrigar o homem que vive em união estável (que possui menos formalidades) a prestar alimentos para a mulher com a qual vive em um relacionamento simultâneo, desde que estejam presentes as circunstâncias excepcionais indicadas anteriormente.
Desse modo, para evitar consequências indesejadas, é importante que as pessoas se resguardem juridicamente e formalizem sua união estável. Uma das possibilidades é a lavratura, em um Tabelionato de Notas, de uma Escritura Pública de Declaração de União Estável.
Por meio dela, as partes dão publicidade à união estável, podem fixar a data do início da união, bem como podem definir qual é o regime de bens aplicável, pois, caso não haja essa definição por escrito, o art. 1.725 do Código Civil estabelece que o regime será o da comunhão parcial de bens.
Em razão da importância do tema, é fundamental que o interessado procure um advogado que possa orientá-lo corretamente em relação às possibilidades existentes, a fim de tornar a vida familiar a mais tranquila e segura possível.
REFERÊNCIAS
https://ibdfam.org.br/artigos/1745/O+tipo+penal+bigamia+e+os+impactos+para+a+poliafetividade
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457637&ori=1
https://www.cnbsp.org.br/?url_amigavel=1&url_source=paginas&id_pagina=6005&lj=1366
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família, vol. 5. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
[1] STF, ADI 4277, Relator(a): AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341 RTJ VOL-00219-01 PP-00212.
[2] STF, RE 878694, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-021 DIVULG 05-02-2018 PUBLIC 06-02-2018.
[3] STF, RE 1045273, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-066 DIVULG 08-04-2021 PUBLIC 09-04-2021.
[4] STJ, REsp 1754008/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2018, DJe 01/03/2019.
[5] TJGO, Apelação cível: 0414137-49.2013.8.09.0127, Relator: FAUSTO MOREIRA DINIZ, Data de Julgamento: 22/01/2019, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 22/01/2019; e TJGO, Apelação cível: 0446623.87.92.2015.8.09.0072, Relator: MAURICIO PORFIRIO ROSA, Data de Julgamento: 18/03/2019, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 18/03/2019.
[6] STJ, REsp 1185337/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 31/03/2015.
[7] TJMG, Apelação Cível 1.0456.17.002548-4/001, Relator(a): Des.(a) Ângela de Lourdes Rodrigues, 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 06/05/2021, publicação da súmula em 01/06/2021.