A competência do foro em ações contra o Estado
10 jul 2020
Goiânia, GO
Setor Oeste
João Victor Barros Paiva[1]
No dia 8 de maio do corrente ano, a população LGBTQI+ obteve um grande avanço na mais elevada instância do país, o Supremo Tribunal Federal (STF), com a decisão, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5543, quando se liberou a doação de sangue por homens gays para terceiros.
O placar total de 7 a 4 expõe que embora um grande avanço tenha sido obtido, o assunto está longe de ser algo unânime, estando acompanhado de calorosas discussões. Por outro lado, a decisão, põe fim no país a uma discussão que iniciou-se nos anos 1980, época em que fora descoberto que a transfusão de sangue entre pacientes, poderia ser mais um meio de contágio do HIV. Neste mesmo tempo, estudos da época indicavam que homens homossexuais seriam o grupo com maior índice de transmissibilidade do vírus gerando um estigma, que até hoje persiste nessa população tão discriminada no nosso país.
Pela regra vigente até então, gays só poderiam doar sangue se ficassem 12 (doze) meses em regime de abstinência sexual.
No Brasil, as doações de sangue por homens gays foram restringidas pelo Ministério da Saúde em meados de 1991, em alinhamento à época, às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Com o passar do tempo, o avanço das tecnologias nos tratamentos da doença e, o aprimoramento dos protocolos de biossegurança e profilaxia, o tratamento da doença avançou de tal forma que o UNAIDS – programa das Nações Unidas destinado exclusivamente ao enfrentamento da epidemia de AIDS, retirou a doença do rol de condição de grave epidemia em escala mundial de doença crônica. Apesar dos avanços colhidos ao longo dos anos, o Governo Federal optou pela manutenção da regra de que não podem doar sangue “homens que relacionam com outros homens e/ou suas parceiras sexuais” nos doze meses antecedentes à doação.
A justificativa do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para a manutenção da medida, está, em síntese, fundada em estatísticas desatualizadas que indicavam uma incidência maior de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) entre homens homossexuais e bissexuais. Apesar da restrição, a regra sempre foi falha em seu autodeclarado propósito de resguardar a saúde pública, pois, nunca evitou que homens gays doassem sangue, omitindo suas orientação e práticas sexuais ao longo do tempo – pois, não é possível, a investigação definitiva sobre a vida de qualquer doador. Mesmo com essa falha, a medida até então encontrava-se em vigor.
Mister aclarar, já de início, que é patente o conflito de normas, ambas consagradas pela Lex Mater e, para tanto, sem qualquer hierarquia entre elas; o direito à saúde (daqueles que recepcionam o sangue do doador) e o direito à igualdade (daqueles que, sendo heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, querem doar seu sangue).
Se, em tempos passados (especialmente na década de 1980) a desinformação sobre a AIDS, justificou e consolidou o entendimento de que a doença estava restrita aos chamados “grupos de risco”, dentre os quais os homossexuais estão inseridos. A superação desse estigma de visão arcaica de pessoas que somente por terem orientação sexual diversa aos padrões heteronormativos da sociedade, estes seriam indignos de doarem sangue, torna o cenário passível para a revisão das normas que violam e estigmatizam essa parcela social.
Ora, se existe o risco de contágio por doenças sexualmente transmissíveis e a impossibilidade de sua detecção no período da janela imunológica, este risco não é restrito somente para um grupo social, independentemente de quais sejam seus hábitos sexuais ou com quem se relacionam.
Outra flagrante incoerência nas medidas adotadas pelo Ministério da Saúde, cinge ao fato de que, desde 2011, o ministério promove a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais[2], justamente com fins de promover a saúde integral da então chamada população LGBTQI+, propondo o fim da discriminação social e institucional e, contribuindo para a universalização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Desta forma, não é razoável o papel do ministério que, por um lado possui um programa destinado à superação do estigma deste grupo e, à promoção da equidade social e institucional; e, por outro, promova por meio de portaria o estigma social, fundamentando políticas de saúde pública em informações desatualizadas, criando óbice à doação de sangue.
Apesar desse cristalino tratamento discriminatório, os órgãos de saúde refutam qualquer ideia ou teor discriminatório da medida, recorrendo na maioria das vezes a uma estatística obsoleta da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que a prática de sexo entre homens elevaria a estatística em cerca de 19,3 vezes a possibilidade de contágio ao ser comparada com homens heterossexuais.
Essa pauta conservadora, com véu de política pública de cuidado com a saúde da população já foi superada em inúmeros outros países, porém, no Brasil, a insistência do Ministério da Saúde e da ANVISA ao longo dos tempos mostrou que a passagem para uma realidade de enfrentamento a atos atentatórios a dignidade dessas pessoas e, discriminatória, não viria pela via natural da evolução da sociedade e dos tempos modernos.
Neste raciocínio, torna-se primordial a posição tomada pelo Supremo Tribunal Federal que em maio, finalmente reconheceu que a exclusão do direito de homens homossexuais a doarem sangue, se fazia atentatória a Lei Fundamental do Estado Brasileiro, justamente por afrontar preceitos fundantes como a dignidade da pessoa humana, o direito a igualdade, além de ir contra os objetivos do Estado em promover o bem-estar de todos sem discriminação e, por afrontar o princípio da proporcionalidade – o qual permite dosar se uma medida legislativa, administrativa ou judicial está de acordo com o texto Constitucional, bem como sobre o “guarda-chuva” dos interesses sociais.
No julgamento da ADI, apesar de 7 (sete) votos favoráveis, o debate nos mostrou que ainda existem visões antagônicas, repisando-se mais uma vez que o assunto não possui unanimidade.
O voto do ministro Alexandre de Moraes chegou a pedir parcial procedência na ação, concordando com os órgãos de saúde de que a limitação imposta, não configura-se tratamento discriminatório por conta da orientação sexual, mas sim na necessidade de proteção ao doador e aos agentes conexos, de modo que homossexuais podem doar o sangue, com a condição de fazerem testagem sorológica. Não deixando de ser um grande aceno, mas carente de elementos fundamentais, uma vez que a testagem sorológica não pode ser restrita aos homossexuais, mas sim destinada a todo o espectro social, independentemente dos hábitos sexuais do indivíduo.
Em contrapartida, os votos dos ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, foram totalmente discordantes ao do relator ministro Edson Fachin. No seu voto divergente, o ministro Lewandowski destacou a necessidade do STF adotar uma posição autocontida diante de normas sanitárias quando estas forem corroboradas por dados cientificamente comprovados. Todavia, o voto vergastado, limitou-se a ter como único elemento fundante, um trecho de uma matéria em um jornal que apontava para um estudo cientifico, em que este defendia, que o lapso temporal da prevalência do vírus HIV entre indivíduos homossexuais, foi 450 vezes maior a encontrada entre os doadores de sangue, e que o Boletim Epidemiológico de AIDS (2016) mostrou que, em 50,4% dos homens que estiveram sexualmente expostos, esses eram exclusivamente homossexuais, bissexuais (9%) e heterossexual (36,8%).
Não há dúvidas, que o voto do ministro implicitamente apontou que a doação de sangue por homens gays é um fator, de aumento do contágio de vírus e outros patógenos, entendendo que a matéria enfrentada não se trata de ato discriminatório, mas tão somente uma medida de saúde pública.
Apesar da justificada preocupação do ministro com a saúde pública, espanta ao fato, dele não ter se atentado para os avanços da medicina diagnóstica, que há muito tempo aponta que a orientação sexual em nada compromete os procedimentos de biossegurança e hemoterápicos, ao passo que os exames disponíveis têm possibilidade de detectar o vírus em até trinta dias (totalmente contrário a lógica desarrazoada do Ministério da Saúde). Mister dispor, que os falsos resultados e a janela imunológica abrangem tanto heterossexuais quanto os homossexuais. Essas questões deixam evidente, que a normativa do Ministério da Saúde, em verdade é discriminatória e com ares nada isonômicos.
A solução para o debate posto não é simples, e exige integrais cautelas dos ministros do STF. A presença de inúmeros amicus curiae no julgamento da ADI 5543 (treze, no total) revela a falta de um posicionamento único no espectro social e institucional, bem como máxime a importância da matéria enfrentada.
O placar do julgamento, sem dúvida alguma, foi histórico. Além de rejeitar qualquer tipo de ares discriminatórios e estigmatizantes, resolve questões cruciais sobre o assunto: a) doenças não escolhem quem serão os acometidos, nem tampouco a sexualidade desses indivíduos; b) não é razoável manter uma portaria como esta, em tempos de evolução dos protocolos de biossegurança e profilaxia; e por fim c) não há vantagem alguma em manter uma medida eivada de preconceitos históricos, em detrimento do principal direito tutelado pela Lex Mater, qual seja o direito à vida.
Um dos grandes avanços que a pandemia de Covid-19 nos trouxe, foi de adiantar algumas questões que não cabem mais na ordem dos tempos que vivemos, retrocessos que não podem ter espaço na pauta nacional. Esse certamente, foi um dos retrocessos históricos superado pelo STF nessa pandemia.
Por fim, encerro esta reflexão com as brilhantes palavras do ministro Edson Fachin, em seu despacho inaugural do voto na ADI 5543: “muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam, impondo a célere e definitiva análise da questão por esta Suprema Corte“.
[1] Bacharelando em direito pelo Uni-Anhanguera, Pesquisador voluntário pelo CONPEDI em Direito Empresarial e estudos em Compliance, Estagiário no escritório Crosara Advogados.
[2] Disponível em: https://www.saude.gov.br/component/content/article/41380-gays-lesbicas-bissexuais-travestis-e-transexuais . Acesso em 23 maio de 2020.