A competência do foro em ações contra o Estado
10 jul 2020
Goiânia, GO
Setor Oeste
Pedro Villas Boas
Antes de adentrarmos ao tema argumentativo, cabe noticiar que nosso ordenamento jurídico adota como regra a independência entre as instâncias.
Essa vertente nasce como uma aplicação extensiva da tripartição dos Poderes e da própria individualização das responsabilidades. Dessa forma, o Direito Brasileiro, adotando essa premissa, pode aplicar para um mesmo fato responsabilizações diversas, cada qual com sua própria fundamentação e conclusão.
A título de exemplificação, um servidor público pode responder a um Processo Administrativo Disciplinar mesmo que uma ação judicial que averigue o mesmo fato originador ainda esteja em curso.
Isso decorre do fato de que a Administração Pública tem o dever legal de investigar e decidir os processos disciplinares não se confundindo com a esfera judicial.
Ou mais, uma pessoa absolvida na esfera penal pode sim responder pelo mesmo fato na esfera cível, arcando com indenizações oriundas do fato ilícito.
Tal assertiva é ilustrada pela jurisprudência dos tribunais superiores, que aplicam, com constância, referido princípio. Vejamos:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PRAZO. PRESCRIÇÃO. LEI PENAL.
APLICAÇÃO ÀS INFRAÇÕES DISCIPLINARES TAMBÉM CAPITULADAS COMO CRIME. ART. 142, § 2º, DA LEI N. 8.112/1990. EXISTÊNCIA DE APURAÇÃO CRIMINAL. DESNECESSIDADE. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVA E PENAL. PRECEDENTES DO STF. SEDIMENTAÇÃO DO NOVO ENTENDIMENTO DA PRIMEIRA SEÇÃO SOBRE A MATÉRIA. PRESCRIÇÃO AFASTADA NO CASO CONCRETO. WRIT DENEGADO NO PONTO DEBATIDO. (…) 4. Não se pode olvidar, a propósito, o entendimento unânime do Plenário do STF no MS 23.242-SP (Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 10/4/2002) e no MS 24.013-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 31/3/2005), de que as instâncias administrativa e penal são independentes, sendo irrelevante, para a aplicação do prazo prescricional previsto para o crime, que tenha ou não sido concluído o inquérito policial ou a ação penal a respeito dos fatos ocorridos. 5. Tal posição da Suprema Corte corrobora o entendimento atual da Primeira Seção do STJ sobre a matéria, pois, diante da independência entre as instâncias administrativa e criminal, fica dispensada a demonstração da existência da apuração criminal da conduta do servidor para fins da aplicação do prazo prescricional penal. 6. Ou seja, tanto para o STF quanto para o STJ, para que seja aplicável o art. 142, § 2º da Lei n. 8.112/1990, não é necessário demonstrar a existência da apuração criminal da conduta do servidor. (…) (MS 20.857/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 12/06/2019)
Contudo, o presente artigo busca trazer a discussão sobre a mitigação do princípio da independência entre as instâncias, ou seja, os aspectos e os requisitos para que as decisões proferidas por uma das instâncias impactem e impeçam a reanálise do fato investigado.
A exceção desse princípio nasce com a prolação de decisão oriunda da instância penal assentada na inexistência de autoria ou a inocorrência material do fato, tornando-a a única instância capaz de obstar a análise pelas demais.
Talvez referida mitigação possa parecer, para o leitor, um mero consectário lógico de que se não há fato típico não haveria como o indivíduo ser responsabilizado nas demais esferas.
Contudo, há de se alertar que o tema não é tão simples como aparenta.
A mera absolvição da imputação, por exemplo, por insuficiência de provas não atrai a forma necessária para a invasão da esfera penal nas demais instâncias procedimentais.
A decisão penal deve, sob pena de permitir o risco natural de conclusões divergentes, absolver o réu por ausência de autoria, inocorrência material ou qualquer outra justificativa penal.
Essa mitigação é extraída do próprio texto legal. Vejamos:
Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria[1]..
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Código de Processo Penal[2].
Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato[3].
Art. 67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:
I – o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação;
II – a decisão que julgar extinta a punibilidade;
III – a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.[4]
Temos, dessa forma, que a exceção desse princípio é bastante restrita, fato exemplificado, também, pela jurisprudência do pretório excelso.
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. LEI Nº 1.711/52. AMPLA DEFESA. VIOLAÇÃO. SÚMULA 279/STF. DECISÃO AGRAVADA ALINHADA COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES. (…) Este Tribunal já assentou a independência entre as esferas penal e administrativa, salvo quando na instância penal se decida pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria, o que não severifica no presente caso. Agravo regimental a que se nega provimento.” (RE 430386 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 18/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 30-01-2015 PUBLIC 02-02-2015)”
Portanto, em que pese a independência entre as instâncias ser a regra, é possível que a decisão penal absolutória produza seus efeitos também nas esferas cível e administrativa, sem lhes ferir a autonomia.
Essa comunicação busca garantir maior segurança jurídica ao acusado que não praticou o fato delitivo continue a responder pela mesma acusação nas outras instâncias, evitando, com isso, que a persecução penal continue a constranger o acusado através das outras esferas procedimentais.
[1] Lei 8112/90
[2] Lei 10406/02
[3] DecLei 3689/41
[4] DecLei 3689/41