A competência do foro em ações contra o Estado
10 jul 2020
Goiânia, GO
Setor Oeste
por Artur Henrique Bahia Azevedo*
Resumo: O presente artigo analisa a aplicação dos arts. 46, § 2º e 52 do CPC/2015, especialmente no que se refere à possibilidade de um ente federado ser demandado judicialmente em outro estado da federação.
A Lei Federal nº 13.105/2015 que instituiu o novo Código de Processo Civil já está em vigência há quase 4 (quatro) anos, mas até hoje a alteração de alguns dos dispositivos do antigo código geram intensa controvérsia.
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça resolveu (ou pelo menos tentou) a celeuma relacionada à natureza do rol do artigo 1.015, que estabelece as hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento.
Mas as controvérsias naturalmente ainda estão longe de acabar e muitas delas estão relacionadas à própria constitucionalidade dos dispositivos, o que inevitavelmente fará com que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie em diversas oportunidades.
É o caso do parágrafo único do artigo 52 e §5º do artigo 46, que versam e impactam na definição de competência em causas que envolvam a Fazenda Pública Estadual:
Art. 46. A ação fundada em direito pessoal ou em direito real sobre bens móveis será proposta, em regra, no foro de domicílio do réu.
[…]
§ 5º A execução fiscal será proposta no foro de domicílio do réu, no de sua residência ou no do lugar onde for encontrado.
[…]
Art. 52. É competente o foro de domicílio do réu para as causas em que seja autor Estado ou o Distrito Federal.
Parágrafo único. Se Estado ou o Distrito Federal for o demandado, a ação poderá ser proposta no foro de domicílio do autor, no de ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, no de situação da coisa ou na capital do respectivo ente federado. […]
Inovando em relação ao código anterior, o código de processo civil de 2015 prevê que a ação proposta em face do Estado ou Distrito Federal poderá ser proposta no domicílio do autor, onde ocorreu o fato que originou a demanda ou na capital do ente federado.
Veja que se tratam de foros concorrentes e não sucessivos, o que torna a escolha de um deles direito potestativo do demandante, exceto, é claro, nos casos de competência absoluta, por exemplo o foro da situação da coisa em caso de ação fundada em direito real sobre imóveis (art. 47 do CPC).
Com relação à possibilidade de propositura da demanda na capital do ente federado demandado, tem-se por compreensível a interpretação do legislador, notadamente por ser na capital que os Estados concentram a sua estrutura jurídica e administrativa, não havendo críticas incisivas quanto a isso, salvo um eventual inchamento das varas das fazendas públicas das capitais, o que não vem ao caso.
Todavia, no que se refere às demais situações, forçoso concluir a novel possibilidade de que o ente federado seja demandado ou tenha que demandar em outros Estados da federação, o que levantou dúvidas acerca da constitucionalidade dos dispositivos.
Para exemplificar, de acordo com o CPC/2015, o candidato que reside em Manaus poderia ingressar com uma ação no seu estado de origem para questionar uma prova de concurso público aplicada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.
Em abril de 2016, o Governador do Rio de Janeiro ingressou no STF com a Ação Direita de Inconstitucionalidade 5492, a fim de questionar dispositivos do novo códex, dentre os quais o artigo 46, §5º e 52, parágrafo único.
A governadoria do Rio argumenta, de forma resumida, que a disposição que obriga o Estado a demandar no foro do domicílio do autor, caso este opte por isso, “violaria o contraditório pleno e a ampla defesa, esvaziando a Justiça estadual e dando margem ao abuso de direito no processo”[1].
Pontua, ainda, que o artigo 46, §5º potencializaria a guerra fiscal, causando um colapso financeiro e tornando inócuo o princípio da auto-organização dos entes federados.
Os autos da ADI 5492, de relatoria do ministro presidente Dias Toffoli, encontram-se conclusos, tendo já admitido importantes entidades na condição de amicus curiae, à exemplo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IDBP), a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira de Direito Processual.
Enquanto a ação não anda, vários juízes de primeiro grau têm acatado a disposição literal do dispositivo, gerando uma desconfiança processual e uma sensação de insegurança jurídica para os entes federados[2].
Pois bem. Analisando os dispositivos questionados no STF, é possível perceber que ao acrescentar a nova hipótese de competência, o legislador ordinário se baseou no artigo 109, §§ 1º e 2º da Constituição Federal, que trata da competência da Justiça Federal:
Art. 109. […] § 1o As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. § 2o As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.
Mas a Constituição também trouxe dispositivos específicos para disciplinar a Justiça Estadual e o fez justamente para atender a ordem constitucional adotada pelo Brasil, de jurisdição nacional, mas também de descentralização judiciária.
O artigo 125, caput, da Constituição Federal confere aos Estados competência para organização de sua Justiça, assim como o §1º determina que as Constituições Estaduais determinem a competência dos tribunais e que leis de organização judiciária sejam de iniciativa do Tribunal local.
Vejamos:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.
O que a Constituição deixa claro e que, em um primeiro momento realmente não parece ter sido observado pelo legislador ordinário, é que a unicidade do judiciário não afasta a atribuição de competências.
Nesse sentido CINTRA, GRINOVER E DINAMARCO[3]:
Depois, fala a Constituição das diversas Justiças, através das quais se exercerá a função jurisdicional. A jurisdição é uma só, ela não é nem federal nem estadual: como expressão do poder estatal, que é uno, ela é eminentemente nacional e não comporta divisões. No entanto, para a divisão racional do trabalho é conveniente que se instituam organismos distintos, outorgando-se a cada um deles um setor da grande “massa de causas” que precisam ser processadas no país. Atende-se, para essa distribuição de competência, a critérios de diversas ordens: às vezes, é a natureza da relação jurídica material controvertida que irá determinar a atribuição de dados processos a dada Justiça; outras, é a qualidade das pessoas figurantes como partes; mas é invariavelmente o interesse público que inspira tudo isso (o Estado faz a divisão das Justiças, com vistas à melhor atuação da função jurisdicional).
Talvez mais adequado seria a limitação territorial da regra contida nos referidos dispositivos, mantendo-se a possibilidade do ajuizamento no domicílio do autor, mas desde que respeitada a limitação jurisdicional.
A jurisdição é, pois, o ponto chave do debate.
Veja que, conforme estabelecido pelo artigo 109 da Constituição, a Justiça Federal possuí jurisdição em todo o território nacional para as causas ali discriminadas.
No entanto, a justiça estadual encontra limite no território do ente federado a que pertence.
Além do próprio artigo 125, existem outras disposições constitucionais expressas de onde podemos extrair tal conclusão. Senão vejamos:
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
[…]
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§ 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
Inclusive, ao estabelecer a obrigação da chamada justiça itinerante, previsão contida no §7º do artigo 125:
§ 7º O Tribunal de Justiça instalará a justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários
Sobre a jurisdição no território estadual, a LOMAN (LC 35/79) também estabelece:
Art. 16 – Os Tribunais de Justiça dos Estados, com sede nas respectivas Capitais e jurisdição no território estadual, e os Tribunais de Alçada, onde forem criados, têm a composição, a organização e a competência estabelecidos na Constituição, nesta Lei, na legislação estadual e nos seus Regimentos Internos.
A aplicação dos referidos dispositivos sem limitação territorial acaba desequilibrando o pacto federativo, vez que submete um ente federado à jurisdição de outro.
Na prática, estar-se-á permitindo que o magistrado de outro estado decida sobre a legislação ou regulação de outro e até mesmo encarregue-se de exercer controle difuso de constitucionalidade.
Imagine só um estado como São Paulo, que concentra a maior parte da indústria, negócios e fluxo de pessoas do País. Caso não seja dada uma interpretação restritiva ao dispositivo, em breve estará respondendo milhares de ações por todo o País.
A médio prazo, seria necessário que os Estados reorganizassem sua estrutura jurídica, expandindo-a consideravelmente e investindo em mecanismos para tentar amenizar as inevitáveis dificuldades processuais, à exemplo do ocorre com a AGU.
Muito embora o Código de Processo Civil tenha vindo para consolidar a ideia de um processo mais justo e célere, atento às necessidades da sociedade, não é possível deixar de lado as disposições constitucionais originárias, assim como também não pode ser desconsiderada a atual situação fiscal dos Estados.
São vários os estados que já decretaram situação de calamidade financeira e que aderiram ao regime de recuperação fiscal instituído pelo Governo Federal.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal não decide a questão, os dispositivos seguem em plena vigência.
Mas o que tem sido observado é que os próprios advogados relutam em ajuizar ações em estados diferentes daquele do ente federativo demandado, o que tem evitado um prejuízo significante e até mesmo uma exposição maior desse assunto nas rodas processuais.
De qualquer forma, na linha do que foi requerido na ADI 5492, o que se espera é realmente a limitação da competência instituída nos arts. 46, § 2º, e 52 aos limites territoriais do ente federativo acionado, em atendimento ao previsto na Constituição Federal, especialmente, o pacto federativo, que tem status de cláusula pétrea.
*Advogado integrante da banca Crosara Advogados Associados e pós-graduado em Processo Civil pela Universidade Federal de Goiás – UFG. [email protected]
[1] C.F in: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=313873. Acesso em 28.06.2019
[2] https://www.conjur.com.br/2016-jul-05/acao-estado-nao-tramitar-foro-sede-governo
[3] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 175.