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Setor Oeste

O estado de calamidade pública e a possibilidade de prorrogação do pagamento de tributos federais

O estado de calamidade pública e a possibilidade de prorrogação do pagamento de tributos federais

09 abr 2020

Por Juliana de Holanda Negreiros Ulhôa, advogada no escritório Crosara Advogados

Vivemos tempos de medo, incerteza e insegurança. O coronavírus se alastrou pelo mundo de forma incontrolável e exponencial, e o aumento no número de casos e a disseminação global da doença fizeram com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretasse a pandemia da Covid-19, no dia 11 de março de 2020.

No entanto, a preocupação com a saúde pública e as medidas que buscam impedir o alastramento desenfreado da doença vêm acompanhadas de crise econômica de caráter mediato e imediato, de proporções gigantescas e até, possivelmente, catastróficas. Os impactos da pandemia são tão graves que transcendem a saúde pública e afeta diretamente a economia.

Nesse contexto, considerando a necessidade premente do governo federal manter o controle da economia, em paralelo com a crise na saúde pública, no dia 20 de março de 2020, o Congresso Nacional, em atendimento à solicitação do presidente da República, publicou o Decreto Legislativo n° 06/2020, reconhecendo a ocorrência do estado de calamidade pública com efeitos até dia 31 de dezembro de 2020. 

Dentre outros objetivos, a decretação do estado de calamidade pública permite e objetiva a flexibilização da meta fiscal da União, diante da perspectiva de elevação dos gastos públicos e queda de arrecadação devido a pandemia da Covid-19.

Em outras palavras, trata-se de um meio formal de autorização para que o estado possa gastar o dinheiro público de forma distinta e além do que foi previsto na meta fiscal do ano de 2020.

A preocupação com a economia permeia todos os níveis da federação e com o Estado de Goiás não foi diferente. Desde o primeiro registro de pessoa com Covid-19, os governos estaduais e municipais vêm adotando medidas relacionadas tanto à saúde quanto à economia.

Na via direta do que fez o governo federal, no dia 25 de março de 2020, através do Projeto de Lei n° 1599/20, houve o reconhecimento do estado de calamidade pública no Estado de Goiás. Na proporção do ente estadual, a medida pretende diminuir os impactos do déficit público no ano de 2020 que, segundo o governador do Estado, Ronaldo Caiado, está previsto para a ordem de R$ 4 bilhões em razão da pandemia.

Da mesma forma procedeu o município de Goiânia, que teve o decreto 799/2020, do prefeito Iris Rezende, aprovado no mesmo dia pela Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, reconhecendo o estado de calamidade pública do município.

Contextualizada a atual situação do país, do Estado de Goiás, e do Município de Goiânia, importa ressaltar que, além da flexibilização do cumprimento das metas fiscais e estimativas definidas, vários outros são os desdobramentos jurídicos dessa situação excepcional.

A boa notícia é que o ordenamento jurídico tributário possui norma que autoriza a prorrogação do pagamento de tributos federais por sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido o estado de calamidade pública, como o estado de Goiás.

É o que diz a literalidade do artigo 1º da Portaria MF 12 de 20 de janeiro de 2012, da Receita Federal: “As datas de vencimento de tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), devidos pelos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública, ficam prorrogadas para o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente.”.

O disposto se aplica, para além dos próprios tributos federais, às datas de vencimento das parcelas de débitos objeto de parcelamento concedido pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e pela Receita Federal do Brasil (RFB). A norma prevê, ainda, que o prazo para a prática de atos processuais no âmbito da RFB e da PGFN, também ficará suspenso até o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente.

Não fosse o melhor dos mundos para os contribuintes de tributos federais, a Portaria MF 12 previu que os atos necessários para a implementação do disposto nesta Portaria fossem expedidos pela PGFN e RFB, nos limites de suas competências, o que não foi feito até o presente momento.

A despeito da inércia dos órgãos na regulamentação da Portaria, a Receita Federal editou a Instrução Normativa 1.243/2012, que alterou os prazos para cumprimento de obrigações acessórias relativas aos tributos federais no mesmo caso disposto na portaria.

Agora, em função dos impactos da pandemia da Covid-19, a Receita Federal prorrogou o prazo para pagamento dos tributos federais tão somente no âmbito do Simples Nacional, através da Resolução CGSN n° 152 de 18 de março de 2020.

Tal fato, no entanto, merece a atenção dos operadores do direito e o alerta dos contribuintes que não estão no Simples Nacional: a inércia do poder executivo federal (RFB e PGFN), na edição de normas para regulamentar os termos da Portaria MF 12, decorre na impossibilidade dos contribuintes, domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública, exigirem o seu cumprimento?

Ouso dizer que não. Primeiro, porque os aspectos temporais da norma, ou seja, o momento em que ela foi editada, em nada influenciam no seu cumprimento, pois a portaria continua em plena vigência e eficácia, podendo produzir efeitos no mundo jurídico desde a data da sua publicação (24/02/2012).

Segundo porque, aplicando a teoria finalística da norma, que aspira compreender o direito do seu ponto de vista funcional, ou seja, para a finalidade na qual a norma foi criada, é direito dos contribuintes que o disposto na portaria produza os efeitos para os quais foi criada, independentemente de quaisquer condicionantes externas.

Ademais, salta aos olhos que a particularidade do cenário atual torna totalmente desnecessária a expedição de qualquer outra norma para promoção de eficácia da Portaria MF 12, notadamente em razão da decretação de pandemia do Coronavírus pela OMS e reconhecimento do estado de calamidade pública em âmbito federal, estadual e municipal.

O Governo Federal praticamente zerou o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro para o ano de 2020, e novas informações pessimistas estão sendo informadas todos os dias pelo governo. É evidente que o cenário é negativo e, ainda que várias medidas estejam sendo tomadas no sentido de frear a crise econômica, as perspectivas são claramente arrasadoras.

Como a economia do país está totalmente comprometida, é inevitável que vários – senão todos – os setores da indústria e do comércio vão sentir significativa perda, sendo a possibilidade de pagar os tributos federais em atraso, sem qualquer penalidade, uma forma da União colaborar com a sobrevivência dos negócios.

Há nesse contexto, inclusive, outros princípios constitucionais que podem ser ressaltados pelo contribuinte para o recolhimento em atraso dos tributos, como a garantia da manutenção da atividade empresarial e dos milhares de empregos que geram.

A alta carga tributária, aliada à crise da economia, queda nas vendas e nas prestações de serviços, importará, por óbvio, na falência de várias empresas que não possuem caixa suficiente para manter a empresa ativa durante a crise. É um ciclo vicioso.

Portanto, é evidente que a particularidade do cenário atual afasta a exigibilidade de que a RFB e a PGFN expeçam normas regulamentadoras da Portaria MF 12. É necessário que os efeitos jurídicos da portaria sirvam de substrato para o fôlego fiscal das empresas nesse momento de crise.  

É importante lembrar que não se está buscando o direito à dispensa ao pagamento do tributo, tampouco a extinção dos créditos já lançados, mas, sim, evitar a inadimplência decorrente da crise econômica que deverá assolar as empresas e garantir que a União arrecade o tributo devido.

A propósito, num estudo mais profundo do que aqui pretendido, a postergação do pagamento do tributo federal poderia se valer o da teoria do Fato do Príncipe, posto que o isolamento horizontal proposto, dentre outras medidas, ainda que em prol da saúde pública, estão produzindo efeitos negativos não esperados na atividade econômica dos contribuintes.

Parece irracional imaginar que, a despeito da decretação de calamidade pública dos entes federal, estadual e municipal, do isolamento horizontal e do respaldo de uma norma jurídica federal, a União impeça a prorrogação dos tributos federais dos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública.

É um cenário delicado que exige análise e cautela dos gestores públicos e dos operadores do direito, principalmente, porque os contribuintes estão buscando reconhecimento dos seus direitos perante o judiciário, porquanto, ainda não foram editadas normas que permitam a possibilidade do recolhimento dos tributos federais em atraso, sem penalidade.

Já existem várias decisões no judiciário brasileiro deferindo liminarmente o direito pleiteado, conferindo ao contribuinte a prorrogação das datas de vencimento dos tributos federais e dos parcelamentos, nos moldes da Portaria MF n° 12/2012 e, consequentemente, a respectiva suspensão da exigibilidade desses débitos tributários, postergando os prazos de vencimento para o cumprimento das obrigações acessórias em igual período, nos termos da IN n° 1.243/2012, sem a incidência de qualquer penalidade.

De todo modo, independentemente das pretensões individuais, os interesses do poder público e do setor privado devem estar em acordo para a sobrevivência do país nessa crise: a saúde pública, a economia e a manutenção dos empregos.


Bibliografia:

https://saude.abril.com.br/medicina/oms-decreta-pandemia-do-novo-coronavirus-saiba-o-que-isso-significa/

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm

http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=37244

https://www12.goiania.go.gov.br/wp-uploads/2020/03/Decreto-n%C2%BA.-799-2020-1.pdf

http://www.normaslegais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-1243-2012.htm

https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/opiniao-estado-calamidade-permite-atrasar-pagamento-tributos