A competência do foro em ações contra o Estado
10 jul 2020
Goiânia, GO
Setor Oeste
Por Juliana de Holanda Negreiros Ulhôa e Guilherme Peternella França*
Em 16 de outubro de 2019, o presidente da República, Jair Bolsonaro, publicou a Medida Provisória n° 899 regulamentando o artigo 171 do Código Tributário Nacional[1], para dispor sobre a transação dos créditos tributários da União nas hipóteses que especifica, tão esperada pelos contribuintes que objetivam adimplir suas obrigações tributárias.
A denominada MP do Contribuinte Legal estabeleceu os requisitos e as condições a serem cumpridas pelos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária na transação de crédito tributário federal, decorrendo na extinção da dívida, nos termos da lei.
A intenção do governo é de regulamentar a celebração de acordo entre o contribuinte e o Fisco Federal referente às dívidas tributárias, em detrimento da impossibilidade da administração pública dispor dos seus interesses e em observância à necessidade arrecadatória do governo. Este pretende receber, no mínimo, uma grande parcela da dívida trilionária dos contribuintes com a União, sem afastar o consectário lógico do benefício da desjudicialização do crédito tributário.
A recente norma jurídica é de grande relevância para os contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, que tenham dívida ativa com a União ou cujos créditos estejam em discussão no contencioso judicial ou administrativo tributário, não se olvidando do cumprimento de todos os requisitos e condições estabelecidos pela MP.
Foram criadas três modalidades de transação que importaram na subsunção do contribuinte às condições estabelecidas, quais sejam: a proposta individual ou por adesão na cobrança de dívida ativa, a adesão nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário, e a adesão no contencioso administrativo tributário de baixo.
Entretanto, causaria espanto se a regulamentação da transação do crédito tributário federal viesse desacompanhada de notáveis restrições e imposições de entraves jurídicos aos contribuintes. A crítica é legítima na medida em que a pretensão máxima da administração pública não é diminuir o peso da cobrança do crédito tributário, dos consectários legais e das multas incidentes sobre o valor do tributo a ser pago pelo sujeito passivo da obrigação tributária, mas, sim, inflar os cofres públicos com a arrecadação de tributos.
Nesse contexto, um dos entraves mais relevantes trazidos pela MP é que o seu objeto não poderá versar sobre o crédito principal da dívida, ou seja, o valor a ser transacionado se refere tão somente aos juros, multas – com exceção da multa penal –, e encargos, sem o valor originário do débito.
No entanto, vale dizer que, ainda que a restrição inviabilize a transação de toda a dívida tributária pelo contribuinte, na grande maioria dos casos, a somatória dos juros, multas e encargos superam o valor do crédito principal, revelando aos poucos as vantagens conferidas ao contribuinte.
Além disso, os créditos tributários das empresas do Simples Nacional, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e não inscritos em dívida ativa – por óbvio, também não poderão ser objeto de transação tributária com a União.
No que se refere aos limites da transação, fatores que de fato importam nos critérios econômico e organizacional para que o contribuinte transacione com a União, ficou estabelecido o prazo máximo de 84 (oitenta e quatro) meses para que seja concluído o pagamento do parcelamento, com exceção da pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. Estas terão o prazo máximo de 100 (cem) meses, com a redução de até 70% (setenta por cento) e àqueles com redução limitada a 50% (cinquenta por cento) do total do valor a ser transacionado. Em todos os casos observando a correspondência entre o parâmetro: quanto maior o desconto, menor o prazo para o pagamento.
Uma importante crítica com relação aos critérios da transação da dívida ativa tributária da União é que, dentre outras hipóteses, o ato do contribuinte, tendente ao esvaziamento patrimonial do devedor como forma de fraudar o cumprimento da transação, importará na rescisão da transação, ainda que o ato tenha sido realizado antes da sua celebração.
Ao que se percebe, o dispositivo legal é genérico e permite que a administração pública utilize de fatos pretéritos à realização da transação para fins de rescisão, bastando que a conduta seja considerada tendente ao esvaziamento patrimonial do devedor para fraudar o cumprimento da transação que, nesse momento, sequer existia.
Inusitadamente, a MP ainda autoriza que a Fazenda Pública requeira a convolação da recuperação judicial em falência ou ajuíze ação de falência contra o contribuinte, caso haja rescisão da transação. Entretanto, deixa de estabelecer os critérios e requisitos para essa hipótese legal.
Com relação à transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, somente poderá ser proposta pelo Ministro de Estado da Economia e será celebrada quando já existente ação judicial, embargos à execução fiscal ou recurso administrativo pendente de julgamento definitivo, em que estejam discutindo o objeto da transação. Ou seja, o crédito tributário deve estar na terceira fase do processo de positivação da norma jurídica tributária ou pendente de julgamento definitivo em âmbito administrativo.
Nesse caso específico, a proposta por adesão deverá ser divulgada na imprensa oficial e nos sítios dos respectivos órgãos na internet, mediante edital que estabeleça todas as hipóteses fáticas e jurídicas que deverão se enquadrar os sujeitos passivos, de modo a satisfazer as condições previstas na MP e no edital.
A norma autoriza o edital a definir exigências a serem cumpridas, reduções ou concessões oferecidas, os prazos e as formas de pagamento admitidas, além de permitir que seja estabelecida eventual limitação de prazo a créditos que se encontrem em determinadas etapas do macroprocesso tributário ou que sejam referentes a determinados períodos de competência.
O contribuinte deverá solicitar a sua adesão à transação, quando do seu interesse e preenchimento dos requisitos estabelecidos, renunciando toda e qualquer alegação de direito com relação ao crédito transacionado, além de requerer a homologação judicial do acordo, para que surta efeitos legais.
Ao que se percebe, numa primeira análise, as condições gerais estabelecidas pela MP 899/19 não são interessantes para os contribuintes “habituais”, que estão acostumados com os programas de recuperação fiscal, os parcelamentos extraordinários – geralmente conhecidos como o REFIS, que oferecem significativa redução da multa de mora, podendo chegar ao seu desconto integral.
Ato seguinte, em 27 de novembro de 2019, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional publicou a Portaria n° 11.956, regulamentando a transação da cobrança da dívida ativa da União cuja inscrição e administração incumbam à ela, nas seguintes taxativas modalidades: transação por adesão à proposta da PGFN, transação individual proposta pela PGFN e transação individual proposta pelo devedor inscrito na dívida ativa.
Ficou definido que a dívida igual ou inferior a R$ 15 milhões deverá ser transacionada exclusivamente por adesão a proposta da PGFN, sendo autorizado, nesses casos, o não conhecimento de propostas individuais. A portaria estabelece, ainda, que a transação deverá abranger todas as inscrições elegíveis do sujeito passivo, sendo vedada a adesão parcial, exceto no caso da transação individual em que o contribuinte demonstre que a sua situação econômica o impede de cumprir com o parcelamento de todo os débitos.
A PGFN autorizou que a empresa em recuperação judicial também apresente proposta de transação individual do crédito tributário federal até a aprovação do plano de recuperação, observadas as condições descritas, o que não era permitido até então. A possibilidade de transacionar os créditos tributários com a União nesses casos demonstra o cenário positivo em diminuir a pressão da empresa recuperanda decorrente do processamento, muitas vezes ineficaz, da recuperação judicial.
Outro direito concedido ao contribuinte é a permissão de utilizar precatórios federais para amortização ou liquidação de saldo devedor transacionado, na modalidade adesão ou individual. Ou seja, o devedor poderá utilizar precatórios federais próprios ou de terceiros para amortizar ou liquidar o saldo devedor.
O benefício é tanto do contribuinte quanto da administração pública federal: o primeiro vai amortizar sua dívida fiscal com a cessão fiduciária do título de crédito à União, e esta irá receber o pagamento do crédito fiscal, muitas vezes de difícil ou impossível recuperação, com a consequente redução da dívida pública devido à quitação do precatório federal.
Em 02 de dezembro de 2019, no cumprimento do disposto no artigo 10 da MP 899/19 e do art. 27 da Portaria PGFN n° 11.956/19, o procurador-geral adjunto da Gestão da Dívida Ativa da União e do FGTS publicou o Edital n° 1/2019 tornando pública as propostas e condições da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para a modalidade de transação por adesão, que poderá beneficiar mais de 1 milhão de devedores.
O edital especificou os requisitos, critérios e prazos da transação por adesão dos créditos tributários da União, no valor de máximo de R$ 15 milhões de reais, sendo que os contribuintes poderão aderir às modalidades de transação neles previstas até o dia 28 de fevereiro de 2020.
Para os dois tipos de crédito tributário, se previdenciário ou não, foram elencadas sete modalidades de contribuinte, cada uma com sua porcentagem de entrada e parcelamento mínimos, acompanhada da redução proporcional do valor do crédito transacionado: (i) para inscrições de devedores pessoas jurídicas cuja situação cadastral no sistema CNPJ esteja baixado, inapto ou suspenso; (ii) nas hipóteses do inciso anterior e em se tratando de débitos de microempresas e empresas de pequeno porte; (iii) para débitos inscritos em dívida ativa há mais de 15 (quinze) anos, sem anotação atual de parcelamento, garantia ou suspensão por decisão judicial; (iv) nas hipóteses do inciso anterior e em se tratando de débitos de pessoas naturais, microempresas e empresas de pequeno porte; (v) para as inscrições com anotação de suspensão por decisão judicial há mais de 10 (dez) anos; (vi) nas hipóteses do inciso anterior e em se tratando de créditos de pessoas naturais, microempresas e empresas de pequeno porte; (vii) para as inscrições de devedores pessoas físicas cuja situação cadastral no sistema CPF seja titular falecido.
Independentemente do tipo do crédito tributário, é de R$ 100 o valor mínimo da parcela para pessoas físicas, microempresas e empresas de pequeno porte; e de R$ 500 para pessoas jurídicas.
Com a formalização da transação, passa a ser obrigação do contribuinte manter a sua regularidade perante o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e regularizar, em até 90 (noventa) dias, os débitos que vierem a ser inscritos em dívida ativa ou que se tornarem exigíveis após a formalização do acordo de transação.
O ato do procurador-geral da Fazenda Nacional, consubstanciado no Edital n° 01/2019, tinha o dever, mas deixou de disciplinar sobre os procedimentos necessários para que a Fazenda Pública requeira a convolação da recuperação judicial em falência ou ajuíze a ação de falência em face do sujeito passivo, na hipótese de rescisão da transação, deixando o contribuinte a mercê dos futuros e incertos entendimentos dos tribunais superiores.
Ressalta-se que o não cumprimento das obrigações estabelecidas e assumidas pelo contribuinte importará na rescisão da transação, com prévia notificação do devedor e possibilidade de regularização do vício ou apresentação de impugnação, no prazo de 30 (trinta) dias, que será apreciada pelo procurador da Fazenda Nacional em exercício no domínio do devedor, cuja decisão poderá ser submetida a recurso administrativo encaminhado à autoridade superior.
Por fim, os anexos I a IV do edital trouxeram a relação de devedores convocados para adesão às modalidades de transação, o que não impede os contribuintes que preencham os requisitos e as condições estabelecidas na MP e no edital verificarem a disponibilidade para adesão, casa seja do seu interesse.
A possibilidade de negociação das dívidas tributárias com a União era muito esperada pelos contribuintes federais, mas não trouxe grandes expectativas para o mercado, notadamente em razão da desproporcionalidade entre parcelamento e prazo para pagamento, especialmente porque a formalização da transação importa na confissão da dívida e, consequentemente, na impossibilidade de posterior discussão pelo contribuinte caso haja rescisão.
De toda forma, não deixemos de reconhecer a atmosfera positiva que se estabeleceu no ano de 2019, com o aumento da confiança recíproca entre o governo federal e a sociedade, em decorrência da edição da Lei da Liberdade Econômica (n° 13.874/19) e, agora, com a MP do Contribuinte Legal (n° 899/19) e o projeto de Reforma Tributária que caminha a curtos, mas constantes passos, no legislativo.
O primordial é que os projetos do governo sejam constitucionais, garantam a segurança jurídica e funcionem na prática, garantido a simplificação, desburocratização e, principalmente, a confiança mútua entre o setor privado e o governo.
[1]Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.
* Juliana de Holanda Negreiros Ulhôa é advogada júnior no escritório Crosara Advogados.
**Guilherme Peternella França é estagiário no escritório Crosara Avogados.